Papo de Vitrola

Domingo até para quem não é santo

Eu não tenho nenhuma religião, mas entramos na semana santa e fico mexida com feriados, não (tanto) pelo teor religioso e sim pela carga de lembranças que eles me trazem, principalmente as gastronômicas. Na minha família tinha a tal “semana do peixe”, então não rolava carne vermelha até o domingo de Páscoa, essas coisas. Fato curioso é que nenhum dos meus pais frequentava a igreja católica, no máximo um santinho, uma vela aleatória, um sinal da cruz ao passar pelos palacetes católicos. Eu não amava nem odiava essa pré festividade regada a peixe de água doce (era o que tinha) preparados de diversos tipos, o que hoje em dia considero pior que gostar ou não gostar de uma comida: ficar indiferente a ela.

Sou vegana desde 2017, foi uma das primeiras decisões que tomei quando me separei e fui pela primeira vez na minha vida, morar sozinha. Instaurei um “começar do zero” não tão aleatório, era um mix de planejamentos passados, como uma história de bonecas (inclusive era assim que minha mãe chamava minha casa: casinha de boneca), eu me sentia vivendo um sonho tendo finalmente as rédeas da minha vida e no total controle do que eu colocava na boca, e claro que ainda estou falando de comida. Minha alimentação foi um dos primeiros alvos e comecei de uma forma gradual-radical: consumia laticínios, mas já estabelecendo que seria por pouco tempo.

Toda data comemorativa aqui em casa rola adaptação dos pratos, minha mãe amava cozinhar, era uma habilidosíssima cozinheira e aprendi muito com ela e com várias pessoas que passaram pelo minha vida que também se aventuravam na cozinha. Tenho meu jeito de cozinhar, mas sou movida por sabores nostálgicos, sempre reproduzindo coisas que eu gostava, sem pesar nenhum, sem julgamentos ou necessidade de explicações. Comida é comida, agora eu tenho minha versão das coisas e saboreio lembrando do que hoje em dia eu não consumo mais, simples assim.

Gosto muito de cozinhar para outras pessoas, principalmente para meu filho, que repete infinitas vezes tudo que eu preparo me poupando de repetir a clássica frase maternal “come mais um pouquinho, vai!”. Depois ele faz o café, eu costumo dizer que o café dele tem um sabor especial, um sabor de agradecimento, de amor, de café feito por quem ama café. Sinto amor assim como sinto amor quando vou na casa da minha sogra e ela sempre prepara algo para que eu seja incluída nos momentos de reunião em família, ou quando o Lohan, que nem vegano é, faz questão de preparar receitas que vê pelo Instagram. Amor.

Tenho consciência que “não consumir coisas de origem animal” é uma pauta polêmica, e isso sem nem encostar nas questões políticas e sociais. Gosto por exemplo de fazer “batatalhoada”, uma receita incrível preparada com batatas, um bocado de azeite, alga nori, pimentão vermelho, azeitonas pretas… só não vai o peixe. Mas não gosto quando os portões do caos se abrem e viro uma herege colidindo com a forma que Jesus escolheu assar batatas ao forno. As pessoas tem medo e um grande julgamento pelos vegetais assados e eu tenho medo de entrar numa discussão fervorosa sobre peixes pulando felizes direto no mar para meu prato num glorioso domingo de Páscoa. Acontece.

Nessa páscoa até ovo de páscoa ganhei do Lohan, e claro, no domingo de Páscoa, prepararei a batatalhoada de todos os anos. É obviamente apenas por saudade não da versão não vegana, e sim por não haver motivo nenhum não preparar algo gostoso e que traga bons sentimentos, tanto nostálgicos quanto novos. Sinto que posso fazer não melhor, mas diferente do que as lembranças e os aprendizados me ofereceram, uma versão “minha vez”, sem impedimentos, apenas tentativas, com a mente aberta e com uma certa presunção: ter memórias ecoando por aí em algum coração quando for minha vez de partir. Nem que seja apenas comendo e oferecendo suculentas batatas assadas – e sem peixe.