Papo de Vitrola

O consumismo mandou lembranças

Na infância eu via minha mãe como uma pessoa acumuladora. Na real, eu tive essa formação de raciocínio quase já chegando na adolescência, quando comecei a ter aquela fase chata e ranzinza de comparar outras famílias com a minha, sabe? Mas nem sempre foi assim.

Numa boa parte da infância, eu nutria um verdadeiro fascínio pelas coisas que minha mãe acumulava. Em dias que para mim tinham aquele ar de “final de ano”, minha mãe entrava em seu ritual típico, aquela faxina anual à espera das festividades. Armazenadas nas embalagens plásticas com botões de pressão das famosas colchas de chenille, ela tirava lentamente seu “paraíso” acumulativo de cima do armário. Para mim, era uma oportunidade de assistir o que minha mãe fazia de melhor, depois de cozinhar: contar histórias com riquezas de detalhes.

Tinha de tudo naquela visitação memorial. Milhares de bilhetes românticos que meu pai e ela trocavam, escritos no topo de um jornal ou embalagens de cigarro, cartões natalinos com músicas que não tocavam mais, fotos antigas da minha mãe sorridente com as amigas, enxoval de fim de ano e, claro: tudo isso embalado pelo clássico cheiro torpe da distância olfativa do tempo, uma coisa meio madeira com naftalina e um toque de lavanda.

No início da adolescência, passei a perder o interesse nesse ritual, e entre outras chatices típicas da idade, passei a me incomodar com as excessivas caixas de papelão que se multiplicavam pela casa, com muita dificuldade para entender por qual motivo coisas acumuladas tinham mais importância que espaços vazios. Qual a necessidade de guardar tantas coisas além das lembranças, tantas necessidades hipotéticas?

No ano de 1997 lidamos com duas enchentes e acabamos perdendo muitas coisas, inclusive fotografias. Entre correria e desespero que só quem já vivenciou esse terror sabe, enquanto a água enlameada adentrava rapidamente pelos cômodos e ia abraçando tudo que encontrava, minha mãe sequer lembrou das caixas de papelão. O que sobrou de fotografias cabe numa pequena caixa que resgatei e guardo até hoje, algumas danificadas nos rostos de quem já não existe mais.

Semanas atrás, eu fui na casa da minha mãe pela primeira vez depois que ela faleceu, quase um ano depois. Meu irmão já havia pego algumas coisas, outra irmã também e eu fui lá pegar outras que haviam restado. A maioria das coisas que me interessavam, não dizia muito para meus irmãos além do fato em comum de um dia terem pertencido à nossa mãe: “cada um tem seu próprio acúmulo material afetivo”, eu pensei. E segurando uma sacola laranja amarrada com um barbante que minha mãe havia nomeado de “Tereza”, eu chorei copiosamente.

Minha mãe sempre teve muito zelo pelas coisas dela e tudo sempre tinha uma história. Tinha de todo tipo, mas às vezes eram histórias carregadas de lembranças difíceis e outras até romantizadas demais. Uma forma que ela me ensinou e eu replico, pois gosto de ouvir histórias e também de contá-las. Lembrando delas, e do quanto elas eram cheias de símbolos que eu não conseguia decifrar, sinto culpa até hoje, pelo período juvenil em que não entendia o paralelo entre a escassez e o consumismo.

Hoje em dia, lembro de alguns desses objetos que estão aqui comigo em momentos que estive com a minha mãe. A lembrança é na maioria das vezes ótima, mesmo o coração ainda ficando apertado e falte um pouco de ar tamanha a saudade que eu sinto dela. Mas gosto de ter aqui comigo esse aglomerado de matéria presente na memória, que mesmo às vezes turva, não foi danificada pela água.

Às vezes, me surpreendo contando sem pretensões, a lembrança que aquele objeto me despertou. Assim como minha mãe fazia. Entendendo que às vezes não é o objeto detentor de toda a importância, e sim a história que ele esteve envolvido. Objetos não carregam histórias, pessoas carregam.

O minimalismo que me perdoe, mas o consumismo me mandou (doces) lembranças. Você teria um tempinho para ouvi-las?