Papo de Vitrola

Tempo, conhecimento e elefantes

Você já deve ter visto o elefante como um símbolo importante na cultura oriental, mas muito mais que parte da decoração de um hostel good vibes de alguma cidade litorânea, o elefante para os hindus significa boa memória, persistência, determinação, longevidade e sabedoria. Ganesh, a divindade com corpo de homem e cabeça de elefante, representa o macrocosmo e o microcosmo, sendo assim paradoxalmente o começo e o fim, simultaneamente¹.

Sempre contei para as pessoas que comecei a ler cedo, e essa era uma história que eu contava despretensiosamente, até me dar conta que o meu “cedo” nem era tão cedo assim e nem de longe fui uma garota prodígio: era apenas a idade que a maioria das crianças começavam a ler. Fui inicialmente alfabetizada em casa, por volta dos cinco anos, nos intervalos em que a Márcia, a moça que cuidava de mim enquanto minha mãe trabalhava, fazia uma meia lua de caneta Bic abaixo de cada sílaba no meu mini gibi do Jotalhão. Acabei sendo motivada a aprender o mais rápido que pude por um importante fator: gibi não tinha tanta graça se lido por outra pessoa (desculpa, Márcia, e obrigada pelos peixes pela paciência!).

Tudo que eu queria era identificar logo cada palavra contida naqueles balões, mesmo sabendo que a história já tinha mais spoilers que qualquer temporada de Game of Thrones. Logo eu estaria lendo até mesmo o que não deveria, ultrapassando a atenção dos meus pais com “revistas proibidas”: livretos de piadas do Ari Toledo que encontrava escondidos debaixo do colchão dos meus pais, e me divertia ao vê-los saltar os olhos e engasgar diante das visitas: “minha mãe tem um livro escrito pau, você já leu?“. Hoje em dia quando lembro dou risada e penso que até as péssimas leituras podem render boas histórias.

Tempos atrás, li um ótimo ensaio sobre os livros da Elena Ferrante, e nele eu vi frequentemente citar a “forma proustiana” dos romances da autora, entre outros tantos escritores mencionados ao longo do texto que eu demorei a ter contato e alguns que desconheço as obras até hoje. Percebe-se pelas referências mencionadas no ensaio que a escritora é uma pessoa muito estudada, e fiquei pensando se ela começou cedo pois a família é toda de leitores, se também teve as sílabas de um gibi marcadas e se dedicou com afinco e tempo aos seus estudos e não vou mentir, sinto uma leve inveja. Seja lá como o tempo ali agiu, foi eficaz e proveitoso, e eu acho incrível que possamos ler pessoas assim e que de alguma forma, nos fazem querer caminhar em mais das inúmeras ramificações do conhecimento.

Continuo sendo uma leitora assídua e por vezes, tento entender o percurso da vida através da leitura – e agora também com afinco na escrita – , mas o tempo é diferente para cada um e por vezes fico presa no emaranhado das complexidades do raciocínio. Preciso pegar um ar e processar se aquela nova aquisição de conhecimento fez sentido para mim e parece que sou de novo uma menininha afobada, tentando a todo custo entender o que o elefante verde disse numa revista em quadrinhos.

meu amado kindle e alguns dos meus amados livros. digital e papel aqui ocupam o mesmo lugar no coração.

O poder destrutivo do tempo foi destacado em uma obra cinematográfica de Gaspar Noé: “o tempo destrói tudo”, a frase enigmática utilizada como prefácio do filme Irreversível, que me causou literalmente vertigem e náuseas mas mudou minha maneira de pensar sobre a vida, o destino e a ordem (des)cronológica das coisas de forma inesquecível. Sinto que existe um peso do tempo sob o conhecimento, e de que estamos sempre à mercê de nunca recuperar o que foi perdido enquanto as que adquirimos escorrem pelos vãos entre os dedos. Em momentos de pesar, as duras nuances do tempo se tornam tão palpáveis que fazem minha mente se romper e produzir todo um maldito processo biológico: minhas mãos suam, meu estômago ferve, minha boca seca, meu nariz inicia uma leve ardência e eu me ponho a chorar por não saber direito o que o tempo quer de mim e pior, se ainda tenho tempo para o tempo. Não existem mais sílabas concavadas à caneta para que eu possa entendê-lo.

Monica Bellucci em cena do filme “Irreversível” (Gaspar Noé, 2002)

Tempo x conhecimento

A escrita me abriu portas e me levou a lugares que pude fingir pertencer, nem que fosse apenas para realizar um sonho de menina enquanto já adulta e inclusive, mãe. Uma constatação que carrego comigo e me impulsiona a seguir, mas que também vai me moldando e me aquietando, focada a não dar passos maiores que minhas pernas e não estar em lugares que não me encaixo mais. Cada vez leio mais, escrevo mais, estudo mais, mas agora para preencher conquistas menos espalhafatosas, para ser acolhida não só pela leitura mas também pela escrita, objetivando apenas não sentir a danada inquietação e tristeza de ver o tempo se esvaindo. Nem sempre funciona, mas seguimos, mesmo no estremecer dos ponteiros.

A propósito, agora além de fazer um curso de escrita, tenho inúmeras facilidades tecnológicas de leitura (te amo, Kindle). Acho incrível poder estar a sempre um clique de livros que não li, de autores que não conhecia, me resgata uma empolgação quase infantil, deslumbrada em querer ler tudo, conhecer tudo, guerreando contra o sentimento de que perdi muito por ter tido pouco. Moro numa cidade que possui quase um milhão de habitantes e que possui uma livraria, apenas. Por isso iniciativas como a Casa de Leitura Soraya Pamplona, criado por uma amiga aqui no RJ eu considero a contramão da falta de contato e ausência de referências literárias, principalmente na infância, quando estamos sendo uma esponja de tudo que nos cerca.

Hoje em dia, compro meus livros pela internet ou em sebos quando vou a outras cidades (em Nova Iguaçu tem um sebo excelente, aliás), mas é algo que a autonomia adulta me proporciona só agora, um dos caprichos sonhados na infância que me deixo levar sem culpa. Não cresci vendo meus pais lerem livros, nem ninguém próximo, então me permito nutrir essa paixão que talvez tenha sido motivada através de uma conexão fina e quase imperceptível, mas que sempre me trouxe um abraço (e alguns tapas, também) a cada esquina, mesmo diante desse inevitável desmoronar do tempo.

¹ Fonte