Papo de Vitrola

Dolores sumiu.

Para contar a história de Dolores, preciso contar antes sobre o Sr. Nelson.

O Sr. Nelson era um artista de Nova Iguaçu. Além de pintor de belos quadros, era professor de artes e idiomas. Apreciador de música espanhola e italiana e colecionador de discos de vinil. Também resgatava gatinhos de rua e todas as manhãs, sentava-se na beirada da sua varanda, limpava e alimentava, com muita paciência, os que eram muito filhotes, até que ficassem fortes o suficiente para ganharem outro lar. Para as aulas, fazia questão de fabricar seu próprio giz, e desenhava cheio de destreza no quadro-negro em sua sala de jantar, que também era sala de aula, adicionando aos ensinamentos sua caligrafia invejável. Aos sábados, bem cedinho, costumava ir à feira, preparava o almoço e cuidava da esposa Jandyra: a alimentava, dava banho e fazia questão de narrar tudo que estava acontecendo com riqueza de detalhes, pois Jandyra era cega há décadas.

Em alguns finais de semana, sr. Nelson costumava receber a neta que havia recém conhecido e que adorava desenhar, e empolgado com seus gostos e curiosidades em comum, sempre a presenteava com apostilas com referências de desenho. A ensinava como desenhar um nariz humano e mostrava com orgulho a mesa revestida de azulejos que ele mesmo fez. Dizia, com carinho e sorridente, todas as vezes ao se despedir: “Um dia, você também será uma desenhista”.

O Sr. Nelson era meu avô, ainda que de consideração, que faleceu em algum mês no ano de 92. Eu tinha 7 anos. Meus pais receberam a notícia através de um telegrama. Na época, me senti injustiçada. Eu mal pude desfrutar da presença dele. Hoje, há mais de 30 anos após o ocorrido, a imagem e o afeto do meu avô ainda reverberam intensamente em mim. Como pode algo tão rápido e terno ter tido tanta consistência após todos esses anos?

Um 3×4 do meu avô Nelson. Ao fundo, artes minhas e também artes do meu avô.

Recebi os quadros que meu avô pintava recentemente, após o falecimento de uma tia. Perguntei pro meu tio se ele tinha, por acaso, alguma foto do Sr. Nelson, já que tudo que eu possuía dele estava apenas em minha memória – o que nunca foi um problema, mas fui atiçada pela curiosidade. Ele me enviou algumas fotos, e junto das fotos do meu avô havia uma foto com uma dedicatória à minha avó, Jandyra, que também já faleceu há alguns anos. Era a foto de Dolores.

Nelson de Araújo Lima. Nova Iguaçu, 1971.
Pintura à óleo de Nelson de Araújo Lima. Nova Iguaçu, 1971.

Não sei nada sobre Dolores, mas ela desapareceu. Quero dizer, a foto desapareceu. Eu a segurei durante um bom tempo em minhas mãos, analisei cada detalhe, cheguei até a devanear sobre Dolores e sua letra afetuosa, e de como o costume de presentear com fotos contendo dedicatórias é algo que eu ainda percorri e que agora acho que não existe mais. Ainda fazem dedicatórias atrás de fotos? Dar uma foto com dedicatória para alguém até os anos 90 era sinônimo de afeto e consideração. Ou, se fosse para um pretendente, era como se fosse uma espécie de “superlike“. Repousei a foto dentro de uma caixinha na estante de livros e Dolores desapareceu.

Pra não dizer que não falei de Dolores, ilustrei tudo que me lembro dela: sua dedicatória, seus cabelos, seus olhos muito negros e a pele pálida. Acredito que Dolores vestia uma saia até abaixo dos joelhos, mas na foto apenas dá pra ver que está vestindo uma blusa de um tecido que parecia muito leve e delicado, com um laço de pontas longas no colarinho. Pra falar do Sr. Nelson, eu precisei pensar em Dolores. Se meu avô estivesse vivo, certamente ele diria para eu confiar na minha memória artística. Não sei se confio. Mas confio em dedicatórias atrás de fotografias.