Papo de Vitrola

A beleza de uma vida sem propósitos

Quando eu tinha uns cinco anos eu conheci meu avô Nelson, que na verdade era padrasto do meu pai. Nos identificamos de imediato, mesmo sem nenhum grau sanguíneo de parentesco: ele fazia belíssimas telas de pintura à óleo (e também dava aulas), falava vários idiomas, amava gatos e adorava música italiana. Me presenteou com várias apostilas de desenho após observar meu precoce interesse pelas artes, e me dizia que eu poderia ter a habilidade que eu quisesse me esforçando e seguindo sempre meu coração. Apesar da pouca idade, fiquei muito motivada e guardei para sempre as suas lições, que ao meu ver já me pareciam tão sábias e acolhedoras…

 

Algum tempo depois, meu pai chegou com a notícia que meu avô havia falecido. Que eu me lembre, este foi meu primeiro contato com o que hoje eu chamo de aperto no coração. Foi quando eu aprendi o real sentido da morte, e desejava com um certo ar de inocência infantil: “queria mesmo era ter a oportunidade de passar um tempinho de novo com o meu avô…”

 

 Todas as vezes que lembro do meu avô Nelson, em penso em propósitos da vida. Penso que jamais saberei se eu tenho algum, se devo ter, se vida a gente escreve na agenda e cumpre metas, ou só deixa rolar, acorda, faz a comida, lê um livro e volta a dormir. Será pela leveza ou cautela?

 

A vida do meu avô pode não ter tido propósito nenhum, talvez, ele tenha acordado todos os dias como de costume, cuidado dos gatinhos que ele resgatava da rua, moldasse o seu giz caseiro e adormecesse algumas horas depois diante da TV. Mas talvez sem pretensão nenhuma, ele direcionou toda a minha vida, tudo que busco até hoje. Talvez algum dos seus alunos tenha aprendido uma técnica tão especial que tornou-se uma marca registrada da sua carreira. E com muita certeza, fez prolongar sua existência só pelo fato d’eu ter prazer de repassar para meu filho as mesmas lições que ele me ensinou.

 

E aí não tem um dia sequer que eu não pense nele e tudo que ele foi para mim, mesmo que por tão pouco tempo. E que talvez, o propósito em viver nunca seja fazer algo esperando grandes transformações ou um sentido absoluto, e sim de pequenos atos espontâneos, um pouquinho da gente que distribuímos na maior boa vontade e que deixamos que carreguem por aí, pra durarem talvez toda uma vida…
My-Strange-Grandfather
Cena de “My Strange Grandfather”, animação de Dina Velikovskaya.