Papo de Vitrola

Violência obstétrica: O seu parto é secreto?

Relatar o parto sempre me pareceu algo muito complexo. Devido às emoções do momento, devido à detalhes que você talvez prefira não citar (por falta de necessidade ou receio de quem escuta). O parto sempre me pareceu algo secreto, muito pessoal, muito resumido. E sempre me perguntei, desde criança, o quão complexo deveria ter um bebê. Como é possível “aí nasceu, fim”? Qual o começo dessas horas que marcam para sempre a vida de uma mulher? Como resumir tanto uma história tão importante, senão a mais profunda experiência na vida de uma mulher? O relato a seguir é longo, mas há tempos que eu sinto vontade de fazê-lo.

 

Bastou eu ter meu primeiro filho para entender. Aos 20 anos de idade, embora ainda jovem para ter um filho, eu estava preparada. Pesquisei, perguntei. Eu sabia o que queria, mas nem de longe sabia o que me aguardava.

 

Sem prematuridade, Pedro deu sinais num sábado às 4 da manhã, no dia 10 de setembro de 2005 que cansou de ficar onde estava. Foi uma noite de insônia. Levantei, fui ao banheiro e me deparei com mais água saindo do meu corpo do que jamais imaginei. Parecia tudo combinado entre nós! Tranquilamente, chamei o pai dele e disse que havia chegado a hora de irmos ao hospital. Me levaram à uma famosa maternidade na cidade de Xerém, considerada referência. Estava tão ansiosa que esqueci meu sobrenome e até a minha idade na hora de preencher a ficha da recepção. Fui orientada a entrar num corredor, vazio e gelado, sem meus acompanhantes. Sozinha. E aí o pesadelo começou.

 

 

Entrei numa sala escura, onde uma profissional iria me examinar. Subi numa maca e fui orientada a colocar as pernas em posição ginecológica. E mais água de parto sai. A moça não pensou duas vezes: em tom ríspido, disse: “EU NÃO ACREDITO que você sujou meus sapatos. EU NÃO ACREDITO! Era só o que me faltava! Você só pode ter feito de propósito!“. Não sei se vocês sabem, mas mulheres grávidas ADORAM sair por aí sujando sapatos das pessoas com água do parto. É uma atividade pouco explorada, porém emocionante.

Claro que não entendi nada. Fiquei confusa, perdida, envergonhada. Mas a ansiedade foi superior à dar ouvidos ao que aquela mulher dizia. E claro, eu não esperava um tratamento VIP numa maternidade pública. Mal sabia eu o que me aguardava.

 

Não lembro como, fui guiada à sala onde as grávidas ficam antes de entrar em trabalho de parto. E dá-lhe espetadas, dá-lhe toque. Na sala, haviam mais duas mulheres além de mim. E uma estagiária muito boazinha, que me dizia que eu poderia tomar banho quente se quisesse. E uma outra, que vinha checar o famoso remedinho na veia, e dizia “Dá pra você ficar quieta e parar de arrancar isso?” Já era horário de almoço e eu estava há mais de 12 horas sem comer e umas 20 horas sem dormir. Pedro ainda não tinha dado sinal que queria sair. Uma outra enfermeira entrou no lugar da estagiária boazinha e trouxe um rádio, desses pequenos, portáteis. Colocou numa rádio de pagode, num volume mais alto do que eu costumo ouvir nos dias de faxina aqui em casa. Cansada, com fome e incomodada com o som alto, perguntei se ela não poderia abaixar o volume. Furiosamente, ela desligou o rádio e saiu da sala. Ficamos sozinhas: as duas mulheres e eu.

 

Como é de se esperar numa situação que tudo encaminha para o desastre, uma das mulheres entrou em trabalho de parto. Na minha frente. Não haviam enfermeiros. E antes dela terminar a frase “Eu acho que vai nas…”, eu vi um parto assim, pela primeira vez, ao vivo, sem ser pelo canal da Discovery. Eu estava chocada e emocionada. Ao mesmo tempo, um desespero bateu: e se eu ficar aqui sozinha? E se não conseguir chamar ajuda? E se algo está errado, e se meu filho morrer?

 

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Retratos da Violência Obstétrica

 

 

Pouco tempo depois, a outra moça também entrou em trabalho de parto. E eu fiquei sozinha na sala. Já eram quase 4 da tarde e nada do Pedro. Mais enfermeiros e a frase apareceu “‘Vamos adiantar isso logo? Vamos fazer força, o máximo que você puder”!. Com a força, gemidos. E não, não eram gritos, por mais que eu soubesse que poderia fazê-lo se quisesse. Um enfermeiro segurou forte em meu ombro, olhou para mim e disse “Acho bom você não gritar. Aqui não tem ninguém gritando com você, tem?“. Gritar? Moço, eu só tenho vontade de chorar desde que entrei aqui. Não perderia tempo gritando, se eu posso berrar, e na altura do campeonato, totalmente justificável.

 

Na hora da sala de parto, a minha maior surpresa: meu parto seria assistido por pelo menos 16 olhares de jovens estagiários. E também com um enfermeiro subindo em cima da minha barriga, forma utilizada para “ajudar a criança a sair“. Eu não sei dizer o que mais me incomodava. E nem o que mais doía, mas garanto: o parto era o de menos ali. Já ouviu falar em episiotomia? É um processo de incisão entre a vagina e o ânus, para “facilitar” o parto. Ninguém pergunta se você quer: somente fazem. Eu levei pontos, e como se não bastasse, ouvi da obstetra: “ops, desculpa… costurei errado, aguenta aí que vou desfazer e fazer de novo”. Afinal, o que são pontos feitos e desfeitos? Sossegadíssimo…

 

Passei mais 4 dias nesta maternidade, pois o Pedro teve icterícia. Chorei dia e noite. Quando parentes e amigos foram me visitar, chorei ainda mais. Implorei para que me levassem junto com eles, embora sabendo que isso não dependia deles. À noite, a coisa só piorava: as enfermeiras disputavam quem seria mais cruel com as mães. Acolhi o Pedro na minha cama, apoiei o berço na lateral e fiz uma espécie de barreira com mantas e minha bolsa para que ele não caísse. Sempre mantive meus filhos fora do berço e o mais próximo de mim possível,  pois como alguns sabem, tenho deficiência auditiva, e dificulta muito ouvir sons mais distantes. Eu não conseguia dormir à noite, e já estava no auge máximo do cansaço. Adormeci e acordei com uma enfermeira me sacudindo e dizendo “Se a criança cair, PROBLEMA É SEU!”

 

Uma menina de 17 anos (que também chorava todos os dias) levantou da cama depois de uma cesária e caiu. Reclamava de dor todo o tempo. E as enfermeiras só diziam: “Levanta da cama de novo, então”. Uma adolescente, sendo castigada de várias formas possíveis…

 

 

Parto não deveria ser castigo. Parto jamais deveria ser uma experiência secreta, um relato perdido numa gaveta. Partos não deveriam ser traumáticos, não deveriam ser confusos. Hoje, 8 anos depois, tenho um filho lindo e saudável, ainda carrego de forma dolorosa essa história e gostaria muito de ter tido uma experiência diferente para contá-la quando ele crescesse. Mas eu não quero mais que meu relato seja secreto. Há oito anos atrás, me senti impotente, não sabia com quem compartilhar, sentia medo e vergonha. Me senti culpada, me senti humilhada. Felizmente, muita coisa mudou, e muitas mulheres tem criado voz para que novas histórias sejam escritas da melhor maneira possível. Eu acredito que quanto mais mulheres tirarem seus partos do arquivo secreto, mais histórias como essa ou piores podem ser evitadas. E a melhor forma de poder reescrever uma história que não deu certo, é evitando que outras sejam escritas da mesma forma. Eu não quero mais partos secretos.

 

 

Gostaria de agradecer ao grupo Roda de Mães de Ubatuba, por conscientizar e orientar cada vez mais muitas mulheres a terem uma boa experiência com o parto. O grupo foi o principal incentivo para que eu conseguisse fazer esse post. É um projeto lindíssimo e vocês podem saber mais clicando aqui sobre o vídeo que eles fizeram sobre a Semana do Aleitamento Materno.

 

Violência obstétrica: você foi vítima?

 

Gostaria também de indicar para leitura esse lindo post da Dani, do Ricota Não derrete.