Papo de Vitrola

Arte, criatividade, portas abertas e Pasolini

Talvez pareça estranho o que vou dizer, mas se um dia você me enviou alguma carta, visitou algum lugar comigo ou me deu algum presente, existe uma grande chance de eu ainda ter algum fragmento disso guardado. Rótulos de chocolate, bilhetes, ingressos, cartões de visita de amigos artistas: eu guardo quase tudo que, afetuosamente, me faz lembrar lugares, pessoas ou situações. E de vez em quando gosto de revisitar, mesmo se for para lembrar de quem nem deve lembrar que eu existo. É mais que apenas uma lembrança de alguém: é uma lembrança física de um sentimento bom.

Abri as seis caixas arquivo que possuo como parte da tarefa de uma das aulas da minha amiga e professora Fernanda, da oficina de Escrita Criativa, com intuito de planejar um acervo de inspirações e referências. Durante a organização dos “fragmentos” – que já beirava o interminável – , encontrei um encarte de quando Lohan e eu fomos à uma exposição do Portinari, no ano passado, no CCBB aqui do RJ. Sair de casa é algo raro, ainda mais se for para se deslocar da Baixada Fluminense até o centro da cidade. Sempre rola todo um planejamento, uma ansiedade para mais um (raro) passeio cultural.

No saguão de entrada do CCBB, nos deparamos com cartazes sinalizando uma exposição que acontecia no mesmo dia, do fotógrafo e cineasta Paolo Pasolini e Paolo Di Paolo – sim, parece até um travalínguas e isso até hoje é uma piada interna por aqui. Sei quem é Pasolini, mas nunca assistimos nada dele. Mesmo assim, ficamos atraídos a visitar a exposição antes de entrar no salão do Portinari. Entramos acanhados, como sempre me sinto quando visito algum artista sem saber pouco ou nada a respeito dele: me sinto cometendo um crime, uma fraude. A sensação é como se alguém fosse descobrir e julgar minha ignorância, me expulsar e isso consuma me causar um desconforto inicial. Depois os pensamentos se ajeitam.

A exposição do Pasolini era simples: um único salão com alguns textos e muita fotografia, obviamente. Nenhuma iluminação nem decoração especial, apenas a luz que entrava pelos janelões do tradicional prédio do CCBB iluminando os painéis e o inebriante cheiro de madeira antiga ultra-lustrada com algum óleo de peroba ou coisa do tipo. Havia apenas nós e uma moça e o salão estava absurdamente silencioso. De certa forma, isso me tranquilizou e me deixou mais à vontade. Uma paz memorável tomou conta de nós. Apreciamos a exposição com muita serenidade e encanto pelas fotografias.

orto di Messina, 1959 ©Archivio Fotografico Paolo Di Paolo
orto di Messina, 1959 ©Archivio Fotografico Paolo Di Paolo

Ao pegar o encarte em mãos novamente, fui transportada para a lembrança do sentimento pacífico daquele dia. Coincidentemente, mais tarde e no mesmo dia, Lohan mencionou sobre a exposição e a paz que sentiu, mesmo sem eu ter dito qualquer coisa a respeito do reencontro com o encarte e minha visita mental a esse episódio em especial. Como se a minha lembrança e o sentimento que revisitei tivessem sido tão intensos que emanaram-se pelos cômodos da nossa casa e fossem alojados para muito além das nossas memórias.

Juro não ser balela de artista, mas eu posso garantir que quando deixamos aberta a porta para receber a arte em nossas vidas, ela nos recebe e conduz a experiências para além das nossas expectativas, nos presenteando com uma vasta cartela de emoções. Tudo que tenho como referência artística é além de apenas conhecimento técnico: são sentimentos, lembranças, surpresas e claro, momentos plácidos como fotografias de Pasolini. É sempre sobre destrancar portas, permitindo entradas e criação de lembranças. Ser surpreendido pela arte não é para desprevenidos: é para humildes corajosos.

Pappagalli a Viareggio, 1959 ©Archivio Fotografico Paolo Di Paolo